Extrativismo, pandemia e outros mundos possíveis:

Recuperação econômica e alternativas das defensoras dos territórios na América Latina

Extractivismos, pandemia y otros mundos posibles:

Recuperación económica y alternativas desde las defensoras del territorio en América Latina

Nossa caminhada como FAU-AL

Esta é uma versão digital resumida da investigação Extrativismos, pandemia e outros mundos possíveis: Recuperação econômica e alternativas das defensoras dos territórios na América Latina realizada pelo Fundo de Ação Urgente, com a colaboração de Catalina Quiroga e Elizabeth López. A publicação nasceu no marco do Programa Mulheres e Territórios que apoia mulheres, pessoas trans e não binárias na defesa de seus territórios na América Latina e no Caribe de língua espanhola.

Desde que iniciamos nosso trabalho de apoio aos movimentos de mulheres na região, vimos de forma enfática a dimensão do extrativismo na América Latina e como sua configuração tem impactos profundos nos territórios e na vida comunitária. A relação entre exploração da natureza e exploração das mulheres e das pessoas feminilizadas se evidencia como eixo central do extrativismo na América Latina e no Caribe. Sobre os efeitos do extrativismo na vida das mulheres, em 2016 lançamos a publicação “Extrativismo na América Latina: impactos na vida das mulheres e propostas para a defesa do território” e continuamos com o compromisso de contribuir com as reflexões sobre o tema.

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O que são extrativismos?

O extrativismo é um fenômeno baseado na exploração de grandes quantidades de recursos naturais. Tem raízes coloniais e opera até hoje, afetando todos os países da América Latina e do Caribe. As atividades extrativas ocupam há vários séculos um lugar central nas políticas econômicas dos países da região, apesar de seu caráter predatório. O extrativismo, então, foi cimentado à custa de danos à natureza, às comunidades e seus territórios, tanto em contextos rurais como urbanos. Possui algumas características principais:

Justifica-se com o discurso do "Desenvolvimento"

Baseada em uma ordem política e econômica, com raízes coloniais, que projeta a ideia de desenvolvimento nos países mais consumidores do Norte Global, ao mesmo tempo que visa os países do Sul Global como produtores periféricos de matérias-primas, como combustíveis fósseis, minerais e produtos agroindustriais, com o objetivo de fortalecer suas economias para o desenvolvimento, reproduzindo um modelo que perpetua as desigualdades nos países do Sul.

As indústrias extrativas estão inter-relacionadas

A mineração, por exemplo, requer energia para a exploração, portanto grande parte da energia obtida pelas hidrelétricas é destinada à mineração. Além disso, a mineração requer infraestrutura para exportação, enquanto a produção de energia requer infraestrutura para transportá-la.

Precificar a natureza

Para isso, fragmentam e separam a natureza: um rio não é mais uma complexa rede de relações entre a água e os ecossistemas, espécies animais e vegetais, nem um ponto de encontro social, econômico e cultural de uma comunidade, mas sim metros cúbicos de água ou megawatts de energia.

Implica a imposição de uma forma de conhecimento sobre outras

A fragmentação e comercialização de elementos naturais são baseadas no conhecimento técnico ocidental que exclui outras formas de relacionamento com a natureza. Esse conhecimento é sustentado por narrativas de “expertises” que entendem as relações humanas com a natureza como solucionáveis ​​a partir de técnicas científicas, tecnológicas e econômicas.

Os tipos mais convencionais de extrativismo na América Latina
e no Caribe são:

Combustíveis fósseis

Agroindústria e monocultivos

Mineração

Impactos do extrativismo na vida das mulheres


Insegurança
econômica


Violência contra as
defensoras do território


Os impactos na saúde
de mulheres e crianças


Negação dos direitos socioculturais


Obstáculos para a participação das mulheres na defesa territorial

Vozes das mulheres sobre os impactos do extrativismo

COLÔMBIA
A atividade mineradora em Carmen de Chucurí deteriorou as condições de vida das mulheres, não só porque 100% dos trabalhadores são homens, mas também porque o acesso à água e à terra foi reduzido. As defensoras de Carmen de Chucurí afirmam que as mulheres "não vivem da mineração", mas se sustentam cultivando diversos produtos, além da pecuária e da piscicultura. A expansão e novos métodos de mineração e exploração de hidrocarbonetos, como fracking, significam deixar mulheres e comunidades sem seus meios de subsistência.

Movimento em Resistência à Mineração e ao Extrativismo de Carmen de Chucurí.
EL SALVADOR
“[...] fomos agredidas pela polícia; principalmente mulheres jovens, foram agredidas em um dos dias em que tinham que vigiar a entrada do projeto [de desenvolvimento urbano] e foram empurradas, insultadas, agredidas.”

Depoimento das companheiras do Movimento de Mulheres de Santo Tomás (MOMUJEST) que denunciam ter sofrido assédio sexual, sequestro, estupro e ameaças telefônicas por se oporem à subjugação da expansão urbana sobre suas áreas de produção agrícola.
PARAGUAI
“Encontramos muitas doenças. Como a deformação dos fetos, eles nascem mortos, nascem com o cérebro aberto que não fecha, alguns tumores no corpo... animais também, por exemplo, as galinhas não botam mais ovos, ficam todas frágeis, por exemplo, o porco, as fêmeas e as vacas, as cabras abortam, perdem todos aqueles bichinhos prenhes, perdem os bichos que vão dar à luz.”

Depoimento da Associação de Mulheres Camponesas e Populares de Caaguazú no Paraguai (AMUCAP). Perto de seu território estão empresários brasileiros e menonitas que usam pequenos aviões para pulverizar monocultivos de trigo, soja, milho e girassol para exportação.
PERU
Ainda que sejam poucas as mulheres que estão vinculadas diretamente à extração de minérios, elas habitam os territórios explorados e estão mais expostas à contaminação ambiental passiva, que se refere à contaminação que permanece na água, no solo, no ar e nos ecossistemas mesmo depois que se encerram as operações nas minas. Devido às responsabilidades de cuidado impostas para as mulheres, elas têm maior contato cotidiano com a água para regar as hortas, preparar os alimentos, lavar as crianças, lavar roupas e limpar a casa, acumulando ao longo do tempo uma maior concentração de elementos contaminantes em seus corpos.

Associação de Defensoras e Defensores da Vida e da Pachamama de Cajamarca (DEVICAPAJ), ao norte do Peru.
EL SALVADOR
A tomada de água por empresas e condomínios urbanos pressiona os meios de subsistência das comunidades rurais. Essa situação tem forçado as mulheres a percorrerem distâncias maiores para obter água, o que resulta em maior cansaço físico, dores musculares e angústias, além de reduzir o tempo de pausa e descanso.

Associação de Mulheres Ambientalistas de El Salvador (AMAES).
GUATEMALA
“O lago é um espaço onde as mulheres vítimas de violência se sentem muito à vontade ... dizem que é um encontro para todas aquelas que ainda não têm esse nível de empoderamento para saírem de casa, por isso, mesmo que tenhamos água em casa, ir para o lago é um momento de poder se distrair, de ver outras mulheres, pela cosmovisão Maia também é um ponto energético, é um ponto onde todas nos sentimos livres, onde podemos recarregar nossas energias e... curar também, a isso se refere[...] nos doeu escutar que o lago estava sendo ameaçado por essas pessoas que vieram nos violar, a nos expulsar e a saquear nossos bens comuns.”

Depoimento de mulheres camponesas e indígenas da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres K'ak'ak 'Na'oj (ADEMKAN) que protegem o Lago Atitlán, em Sololá (Guatemala), onde existe um projeto de canalização e transbordo de suas águas para uso no agronegócio da cana-de-açúcar.
MÉXICO
Embora a defesa do território seja dirigida conjuntamente por homens e mulheres, nos últimos 5 anos, o Coletivo pela Autonomia assumiu um compromisso político feminista, iniciando um processo de formação com as mulheres, uma vez que foram histórica e sistematicamente excluídas dos processos deliberativos, devido a não ter acesso à terminologia técnica, falar apenas em suas próprias línguas e ter baixo nível de escolaridade.

O Coletivo para a Autonomia do Oeste do México, em Jalisco, atua pela defesa dos territórios coletivos, das sementes nativas e do bem comum. Em 2010, a região foi declarada um “gigante agroalimentar”, o que significou a exacerbada expansão dos monocultivos.

Os conflitos socioambientais decorrentes do extrativismo são uma disputa entre diferentes formas de compreender as relações com a natureza, atravessadas por relações desiguais de poder que sobrepõem uma visão de mundo a outras. Para analisar as implicações do extrativismo no cotidiano é importante reconhecer essas disputas e a perda de autonomia decorrente da imposição das lógicas extrativas aos territórios, que acaba configurando uma série de desapropriações.

“A expropriação é um violento processo de reconfiguração socioespacial, e em particular socioambiental, que limita a capacidade de indivíduos e comunidades de decidir sobre seus meios de subsistência e modos de vida. A expropriação implica uma transformação profunda das relações entre humanos e não humanos que resulta em restrições de acesso aos recursos. Isso muitas vezes se traduz na impossibilidade de decidir sobre o território, a própria vida e o próprio corpo; desapropriação está associada à perda de autonomia.”(Ojeda, 2016; 34)

Nos últimos anos, a crise climática tem levado a repensar a matriz energética e incentivar a redução do uso da energia produzida a partir do carvão, óleo e gás, uma vez que a queima desse tipo de combustível é o principal responsável pelas emissões de carbono que aquecem a atmosfera.

Porém, sem uma abordagem de justiça ambiental, essa transição energética proposta a partir do conhecimento técnico hegemônico, aprofunda a implantação de antigos e conhecidos extrativismos, pois requer a utilização de metais como cobre, cobalto ou lítio para melhorar o desempenho das baterias de armazenamento e para os circuitos que permitem uma distribuição eficiente de energia eólica, solar e hidroelétrica.

Os extrativismos “verdes”

Monocultivos industriais: biocombustíveis e plantações florestais

Combustíveis de origem vegetal como óleo de palma, cana-de-açúcar ou milho são apresentados como alternativas aos combustíveis derivados de petróleo. No entanto, seu cultivo requer grandes quantidades de solo e água e também utilizam pesticidas e conservantes ​​para sua produção em larga escala.

Como consequência, a fronteira agrícola aumenta, deslocando comunidades e gerando impactos ambientais como erosão do solo, contaminação e ressecamento de mananciais, perda de biodiversidade e diversidade agroalimentar.

Os plantios florestais incluem o cultivo de espécies madeireiras, geralmente não nativas, para comercialização e podem estar relacionados à compensação ambiental de grandes empresas, por meio de projetos de reflorestamento. Dentro das plantações florestais, destaca-se o cultivo de árvores como a teca, o pinheiro e o eucalipto, que se caracterizam pelo elevado consumo de água e erosão do solo.

Hidrelétricas

Em 2019, a América Latina era a segunda região com maior capacidade instalada de produção de energia por meio da construção de grandes represas em rios.

Com 109,06 gigawatts de capacidade instalada, o Brasil é o segundo maior produtor mundial de energia hidrelétrica, atrás da China.

A inundação de terras frequentemente férteis e produtivas para a construção de barragens desloca comunidades inteiras. Sua construção envolve violações de direitos humanos em toda a região, incluindo perseguição, criminalização e assassinato de pessoas defensoras do território.

Há mais de 12 anos, as comunidades de Antioquia, na Colômbia, se opuseram firmemente ao projeto Hidroituango, um projeto hidrelétrico de grande escala. O projeto afetou profundamente o Rio Cauca, impactando os seres vivos que habitam a bacia e as relações das comunidades que dependem de seus ecossistemas. Também aprofundou a disputa pela posse da terra e aumentou a violência em meio ao conflito armado, visto que lideranças sofreram ameaças, ataques e assassinatos, que se agravaram em 2018¹, ano em que a construção da barragem sofreu graves reversos relacionados a erros no planejamento e gestão dos riscos associados à sua construção.

¹ Para mais informações, consulte: Publicações do Centro de Memória Histórica sobre o caso de Hidroituango e Perigo para defensores ambientais em 2018: o caso de Hidroituango na Colômbia de Mongabay Latam

Parques de energia solar e eólica

A produção de energia eólica e solar são aquelas obtidas por meio de raios solares e correntes de vento. Sua produção na região está aumentando. A América Latina instalou 13.427 MW de capacidade eólica terrestre em 2019, 12% a mais que em 2018.

Sua produção está estruturada em grandes parques eólicos ou solares, que ocupam grandes áreas de terreno e requerem a exploração em larga escala de minerais como o cobre e o lítio para a sua instalação. Esses metais são fundamentais para o funcionamento dos circuitos elétricos de painéis e moinhos, bem como para o armazenamento e transporte dessas energias.

O uso extensivo da terra tem gerado deslocamento de comunidades rurais, indígenas e negras que, na maioria das vezes, não são consultadas ou consideradas para a implantação dos empreendimentos. A vasta extensão de fiação e usinas de energia para transportar essas energias também impacta várias comunidades ao longo do caminho. Na maioria dos territórios onde esses projetos estão instalados, existem comunidades que não têm acesso à energia elétrica e não se beneficiam de sua implantação.

Mulheres Sarayaku, da Amazônia equatoriana, contra a exploração de balsas em seu território.

O aumento da implantação da energia eólica teve impacto imediato nas comunidades amazônicas, pois os moinhos de vento produzidos na China para atender a demanda mundial são feitos com madeira balsa em suas vigas, por se tratar de um material muito leve.

A maioria dos madeireiros que entraram em território amazônico para cortar as árvores de balsa nas margens dos rios o fazem de maneira ilegal, sem qualquer licença ou regulamentação.

Como resultado disso, a violência nas comunidades aumentou, a um custo significativo para as mulheres, que a vivenciam especificamente em seus corpos. Além disso, o corte quase total das árvores balsas nesta região trouxe impactos ambientais de grande escala.

“Em março do ano passado, todas as bacias hidrográficas tiveram uma elevação extrema, que chegou a destruir casas, pontes, etc. Todos os ramos das balsas derrubadas vieram pelo rio, o que impossibilitou a mobilidade através dele. As pessoas tiveram que se refugiar nas partes altas (…) Além disso, as ilhas de balsas são lar para um grande número de animais, aves como pássaros dourados, a águia harpia, as lontras”. O povo Sarayaku disse não à jangada, “aqui não entra aqui e o território é respeitado, fomos tachados de inimigos do desenvolvimento, mas não vemos possibilidade de sustentabilidade ali.”

De onde vem a energia da América Latina e do Caribe?

Os mercados associados à mineração, ao agronegócio e à exploração de hidrocarbonetos, bem como à construção de infraestruturas, continuam vigentes e são centrais nas decisões de investimento dos governos da região.

Estas formas de exploração entram em trânsito ou combinação com novas tendências “verdes” de exploração, fragmentação e globalização da natureza, e desta forma aprofundam as desigualdades e expropriação das comunidades.

A matriz energética da América Latina e Caribe continua ancorada em duas fontes: a primeira é a hidrelétrica, que até 2020 contribuía com 55% do total de energia consumida na região e, a segunda, a energia térmica não renovável, ou seja, aquela produzida a partir de combustíveis fósseis que, no mesmo ano, contribuiu com 41%.

A lógica extrativista não desaparece com as políticas e iniciativas para mitigar as mudanças climáticas, no entanto ampliam as fronteiras de exploração da natureza.

O extrativismo, em todas as suas variantes, se posiciona como uma atividade chave para os governos, mas os seus rendimentos são insuficientes para considerá-la uma atividade infalível para o crescimento e a sustentabilidade das economias da região.

A pandemia da Covid-19 tem intensificado a crise sanitária, social e econômica que vivemos no planeta.

Analisada com uma lupa, a pandemia tem suas raízes no atual modelo econômico e produtivo, pois sua possível origem e a impossibilidade de conter contágios tem a ver com:

a devastação de ecossistemas

a falta de acesso a serviços públicos básicos, como saúde, por grande parte da população

a priorização dos ganhos econômicos sobre a vida das populações

Na América Latina e no Caribe, os impactos da pandemia foram e continuam sendo altamente diferenciados, o que destacou ainda mais as profundas desigualdades estruturais que existem em nossa região, marcadas pelas diferenças de acesso a serviços básicos entre a população urbana e rural, e atravessados por classe, raça e gênero.

Novas emergências e vulnerabilidades desencadeadas pela pandemia da Covid-19 foram somadas aos impactos diretos do extrativismo, fazendo com que ações de resistência ao extrativismo coexistam e se cruzem com as preocupações que este novo contexto tem implicado nas esferas pessoais, familiares e comunitárias. É preciso entender que estes são tempos difíceis para as defensoras.

Nos unimos às suas vozes que afirmam que a lógica desigual, que já operava nesses territórios, explica a elevada violação de direitos neste período de crise sanitária.

Como a pandemia do Covid-19 afeta
as mulheres defensoras dos territórios?

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Aumento da violência doméstica

Aumento da violência doméstica

Em muitos dos contextos não existem serviços de atendimento, como linhas de emergência que respondam às agressões do parceiro ou intrafamiliar, cabendo às próprias defensoras acompanhar as situações de violência doméstica em suas comunidades ou mesmo, de mulheres de suas próprias organizações. Estes acompanhamentos têm sido muito difíceis em tempos de pandemia.

Violência e medo como dispositivos de controle do Estado

Violência e medo como dispositivos de controle do Estado

O estado de exceção suspendeu os direitos civis de algumas populações na América Latina e implantou o uso excessivo da força policial e militar para controlar as cláusulas de salvaguarda e restrição de mobilidade emitidas. Essas medidas, longe de gerar uma sensação de segurança, desencadearam um estado de medo e insegurança coletiva.

Informação como dispositivo de controle

Informação como dispositivo de controle

Devido à dimensão da crise que a pandemia acarreta em cada país, é extremamente importante que as pessoas possam confiar nas informações oficiais que circulam. Isso tem sido difícil em nossa região, pois alguns governos oferecem informações parciais e números fraudulentos.

Racismo estrutural e serviços públicos precários em meio a uma crise sanitária

Racismo estrutural e serviços públicos precários em meio a uma crise sanitária

O racismo ocupa um lugar central nos conflitos socioambientais. No contexto da pandemia, o racismo estrutural tornou-se evidente já que a situação de vulnerabilidade das populações indígenas e negras foi agravada pela ausência de medidas que considerem o ordenamento jurídico destinado aos povos tradicionais e originários.

Quarentena seletiva e precariedade econômica

Quarentena seletiva e precariedade econômica

As defensoras questionam o privilégio das empresas de continuarem realizando suas operações, enquanto elas ficaram impossibilitadas de trabalhar e enfrentaram a ausência de planos de contingência oportunos.

Vozes das mulheres sobre os impactos da pandemia

EL SALVADOR
“(…) Para nós mulheres, isso de Covid, da pandemia, tem sido uma sobrecarga considerável, porque os filhos não vão estudar, a mulher faz a comida, limpa a casa e tudo, e tem que ensinar hoje as crianças a ler e escrever, é extremamente carregado.”

ACOMEST. El Salvador.
EL SALVADOR
“Já atendemos pessoalmente cinco colegas que tiveram a coragem de nos contar, [em outros casos] soubemos por outras companheiras que nos falaram 'olha, essa companheira está sendo violada' (...) atendemos cinco casos bem específicos na zona rural, onde as companheiras nos diziam: 'Não aguento mais ... Não aguento mais ficar em casa. Não aguento mais, porque meu companheiro me bate'. (...) O outro problema que também nos preocupa é a gravidez de meninas e adolescentes. (...) Até hoje, na faixa dos 10 aos 17 anos, temos 32 gestações, e a verdade é que isso nos deixou muito preocupadas.”

Depoimento da Associação para o Desenvolvimento do Tejutepeque (ADIT).
GUATEMALA
“(...) Uma coisa é que coloquem a PNC [Polícia Nacional Civil], pode ser a polícia, mas o exército? Com os grandes tanques na rua ali, guardando as ruas, intimidando a população, isso não foi fácil para a população (...)”.

Depoimento do Comitê para o Desenvolvimento Camponês (CODECA), que trabalha pelos direitos das comunidades camponesas e indígenas na Guatemala. No caso das mulheres resistentes ao extrativismo na Guatemala, a militarização trouxe de volta a memória dos anos 1980, quando o governo cometeu genocídio contra o povo Maia com o objetivo de expropriar suas terras e dar lugar à expansão do agronegócio.
BRASIL
“(...) o governo nacional destinou recursos emergenciais para as pessoas e não nos levou em conta. Quando a ajuda chega, e dificilmente chega, o processo [prazo de inscrição dos subsídios] já passou, então temos que nos sustentar em um processo coletivo de solidariedade.”

Depoimento de mulheres da Associação União Quilombola de Araçá Cariacá, no Brasil, sobre as comunidades quilombolas que nem sequer foram contempladas nas poucas medidas emergenciais concedidas pelo governo.
HONDURAS
“(...) pois aqui são comunidades pobres e já existe uma limitação no acesso aos recursos econômicos porque não há acesso às praias. Com a questão da Covid, além disso, fecharam nosso acesso aos poucos que têm acesso à pesca e para o pouco que podem fazer, por exemplo, a recolha de moluscos e o que dá o Mar Branco - e não podem comercializar porque todos os acessos estão fechados (...)”.

Depoimento das mulheres da Associação para o Desenvolvimento da Península de Zacate Grande (ADEPZA), cujo território está em disputa devido à tomada de terras por parte dos fazendeiros e latifundiários hondurenhos.
GUATEMALA
“Há companheiras que falaram ‘estou deprimida trancada aqui’, a situação tem sido bastante complexa, também para algumas que trabalham fora de casa, pois seu trabalho é triplicado porque elas têm que trabalhar em questões virtuais e estão no comando da casa, mais os filhos (...)”.

Depoimento de La Otra Cooperativa sobre o aumento do trabalho de cuidado em casa para mulheres em tempos de pandemia.

Como superar essa crise?

Os governos da região já têm uma resposta: redobrar o apoio às atividades econômicas extrativistas que pouco ou nada têm feito para garantir uma vida digna às populações. Os governos têm posicionado o extrativismo como alternativa de geração de dinheiro em meio à crise sanitária e como forma de recuperação econômica promovida e desenhada com o apoio de grandes corporações internacionais.

Em quase toda a região, as atividades de exportação foram declaradas essenciais desde o início das restrições de mobilidade, incluindo o agronegócio e a produção de biocombustíveis. A mineração, por sua vez, foi declarada essencial desde o início das quarentenas em países como Colômbia e Chile, enquanto países como Bolívia, Peru e Argentina acabaram por integrar essa atividade como essencial após algumas semanas ou meses sem permiti-la. Na Argentina, a inclusão das atividades de mineração como “essenciais” foi motivada pela possível contribuição desta atividade para a economia nacional.

O levantamento das restrições às empresas extrativas está intimamente relacionado com os planos de recuperação econômica declarados por cada um dos países da região. Nesse sentido, a maioria dos países declarou as atividades extrativas, em algum momento da pandemia, como essenciais para as economias nacionais no âmbito das restrições à mobilidade. Em países que não declararam quarentenas obrigatórias como Nicarágua, Brasil ou México, as empresas dedicadas ao extrativismo continuaram trabalhando durante a pandemia, apesar do risco sanitário que essas atividades implicam.

Atividades extrativas e contágio da Covid-19

A continuidade da mineração colocou em risco de contágio as pessoas trabalhadoras das empresas, famílias e comunidades que circundam os enclaves. O Observatório de Conflitos de Mineração da América Latina – OCMAL (2020) relata que em julho de 2020, pelo menos 8.048 casos de trabalhadores de mineração infectados foram documentados, sendo 5.000 deles no Chile, 1.850 no Brasil, 905 no Peru e 58 na Argentina. Para outros países da região, não existem dados semelhantes sobre contágio e pessoas que desenvolveram os sintomas. Além disso, em julho de 2020, o OCMAL reportou 79 trabalhadores falecidos no setor em toda a região. As mineradoras BHP, Glencore e Anglo American apresentaram casos de contágio no Peru, Colômbia e Chile (OCMAL, 2020), ainda que segundo suas páginas e relatórios internacionais cumprissem com os protocolos de biossegurança para garantir a continuidade da produção.

Resumo dos elementos gerais dos planos de recuperação econômica nos países da América Latina e do Caribe

As Instituições Financeiras Internacionais (IFIS) têm um papel fundamental na reativação econômica da região. Estas entidades também desempenham um papel muito importante na geração de alianças público-privadas, prestam assessoria técnica a países e atores privados e intervêm no fortalecimento das capacidades empresariais. Por isso, desempenham um papel crucial na promoção de projetos extrativistas na região. Alguns dados:

  • Em 2020, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou um total de 45 projetos de energia renovável em vários países da América Latina e do Caribe.
  • Em 2020, o BID aprovou 21,6 milhões de dólares para operações de assistência e desenvolvimento em toda a região.
  • No marco da pandemia, e em um contexto regional de emergência social, o Banco Mundial aprovou um financiamento no valor de 7,8 bilhões de dólares para 67 operações na região.

Saber como funcionam e quais projetos as IFIS financiam é um passo importante na defesa do território. O FAU-AL, em conjunto com outras organizações aliadas no âmbito do Count Me In! contribuiu na elaboração da publicação “Por trás do extrativismo: dinheiro, poder e resistências comunitárias” que ajuda organizações de base a conhecer e desenvolver estratégias voltadas para os atores que financiam o extrativismo:

Os obstáculos impostos pela pandemia são realidades incontornáveis ​​que levam a novas reflexões sobre autonomia, alimentação própria, cuidado com a vida e recuperação de saberes ancestrais sobre saúde, além de demandar novas formas de compreender a proteção coletiva dos corpos e dos territórios comunitários, mantendo a solidariedade como base nos tecidos sociais.

Do mundo visível ao mundo possível: alternativas comunitárias lideradas por mulheres

As respostas coletivas lideradas por mulheres para enfrentar os riscos à saúde e à crise econômica intensificada pela pandemia da Covid-19 demonstraram sua capacidade de sustentar as comunidades e seus modos de vida em um contexto de crise.

As ações de resposta à emergência sanitária propostas pelas organizações de mulheres que participaram desta pesquisa não separam as necessidades do corpo e do território coletivo, e além de serem uma reação a situações emergenciais específicas, respondem a sistemas de exclusão e violência com a construção de outras formas de vida e novos acordos sociais.

Alho, ervas e gengibre: a saúde em nossas mãos

Em diferentes comunidades e culturas, existem diversas maneiras de compreender a saúde e a doença. O conhecimento coletivo e ancestral salvaguardado pelas comunidades sobre a medicina tradicional e suas diferentes práticas estiveram presentes nas respostas das organizações de mulheres para a prevenção e tratamento dos sintomas da Covid-19.

As mulheres têm um papel importante no uso e na propagação destes saberes, porque são elas que, na maioria das vezes, as encarregadas de cuidar da saúde no contexto domiciliar. Ao enfrentar a pandemia, as mulheres acudiram a plantas medicinais de maneira cotidiana, realizando uma série de receitas e recomendações para a prevenção e os cuidados em casa.

Vire as tarjetas para mais informação.

Colômbia

Colômbia

As mulheres de Carmen de Chucurí coletaram conhecimentos comunitários para a elaboração de um livro de receitas com as plantas medicinais da região, que você pode conferir aqui
Ver livro de receitas

Equador

Equador

A rede de mulheres Saramanta Warmikuna impulsionou a elaboração de medicamentos tradicionais para enfrentar os sintomas da Covid-19 e organizou um catálogo de medicamentos em seu site como uma iniciativa econômica para mulheres curandeiras.
Veja o catálogo

Brasil

Brasil

“Pensamos que uma alimentação saudável é o melhor para aumentar a imunidade, por isso temos aqui alimentos como a cebola, que é um dos ingredientes usados para fazer xarope, também alho, limão.”

Depoimento do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), que se articula em âmbito nacional para resistir à mineração em larga escala no Brasil. As mulheres têm gerado estratégias autônomas e autogeridas para promover, por exemplo, o cultivo de hortaliças que ao mesmo tempo em que melhoram sua alimentação, geram ingressos para as mulheres.

A sustentabilidade econômica das mulheres
e suas comunidades

As alternativas econômicas desenvolvidas pelas mulheres são pensadas a partir da realidade de suas comunidades, elas têm uma visão de benefício coletivo e respeito à Mãe Terra.
Em suas propostas, o apoio individual está vinculado ao apoio familiar e comunitário; são entendidas como redes interconectadas que buscam o bem-estar coletivo. Essas alternativas buscam promover a autonomia das mulheres, não só em termos materiais, mas também em termos de tomada de decisão com base em sua vontade e independência.

Peru

Peru

“(...) vamos ensinar as pessoas a protegerem suas plantas e, além disso, vamos gerar nossos próprios recursos, que não são muitos, mas ajudam. Porque às vezes as pessoas falam ‘não, as defensoras, aquelas lutadoras, aquelas que são contra o desenvolvimento dos povos’, certo? Nos chamam assim, certo? Que assustamos as pessoas para que fiquem contra o desenvolvimento dos povos, porque mineração é desenvolvimento.”

Depoimento de mulheres da Associação de Defensoras e Defensores da Vida e da Pachamama, em Cajamarca. Elas produzem tinturas e óleos medicinais, xaropes e sabonetes de ervas que têm permitido que as mulheres tenham uma renda econômica coletiva e individual fora das redes econômicas da mina Yanacocha.

Honduras

Honduras

“(…) Dizemos que a nossa luta é pelo território e recuperação das praias, não só de Zacate Grande, mas de todos nós que estamos neste país, para que venham aproveitar e que as famílias possam gerar recursos, por meio da oferta de hospedagem ou alimentação.”

Depoimento de mulheres da ADEPZA, organização que luta pela recuperação do litoral por meio da pesca sustentável do camarão e do turismo comunitário.

Mecanismos comunitários de comunicação

Ter alternativas de comunicação locais e independentes é um fator chave nos processos de organização, como em relação à gestão comunitária da saúde. No contexto da pandemia, os protocolos de cuidado, atenção e prevenção foram desenvolvidos em muitos casos pelas próprias comunidades, com informações adequadas aos seus contextos, que foram compartilhadas através dos meios de comunicação comunitários e alternativos.

Honduras

Honduras

“(...) parte do apoio foi preparar um material informativo que se chama 'Saúde nas nossas mãos' onde, por parte da organização, colocamos conceitos muito básicos sobre a questão do Coronavírus, as medidas que deveriam ser tomadas nas comunidades. Isso foi replicado através de pequenos programas radiais.”

Depoimento de mulheres do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras.

Brasil

Brasil

A Associação União Quilombola de Araçá Cariacá gerou boletins epidemiológicos informando tanto sobre o que é e como é transmitida a doença, quanto sobre o uso de medicina preventiva tradicional. Os boletins foram distribuídos tanto em quilombos quanto em assentamentos urbanos de pessoas que deixaram seus territórios de origem.

Guatemala

Guatemala

“(...) na televisão falavam que apoiavam as famílias mais atingidas, mas na realidade não, tínhamos comunicação com o nosso pessoal das comunidades e ninguém tinha recebido ajuda. O que nós fizemos? Fizemos sete vídeos de menos de um minuto entrevistando viúvas, entrevistando pessoas que nunca tiveram serviço de luz, entrevistando idosos, entrevistando alguns músicos ... e acontece que ninguém nunca recebeu ajuda. Então a gente publica esses vídeos nas redes, como se mostrasse o outro lado da moeda, certo? O que a televisão diz e o que nós falamos junto aos territórios.”.

Depoimento das ações coordenadas pelas mulheres da CODECA.

Prevenção do contágio e mecanismos comunitários de proteção do território

Além de ativar ações de proteção e cuidado à saúde, no âmbito individual e familiar, algumas comunidades implantaram medidas de controle e vigilância coletiva em seus territórios, instalando postos de desinfecção e permitindo o trânsito apenas de recursos essenciais. Esses mecanismos são fruto de consensos e reflexões sobre a proteção coletiva.

Peru

Peru

Em Cajamarca, as Rondas Campesinas, por mandato e consenso, organizaram um sistema de vigilância para suas comunidades. Este acompanhamento de quem circula no território permitiu recolher provas de que a mineradora Quellaveco, pertencente à transnacional Anglo American, estava violando as ordens de quarentena estabelecidas no estado de emergência nacional.

Bolívia

Bolívia

Diante do descaso do governo e da ameaça das atividades mineradoras que continuavam a operar em sua região em meio à pandemia, as mulheres do povo indígena Leco, no norte da Amazônia boliviana, decidiram isolar seu território e iniciar um processo de vigilância autônoma.

Cuidado coletivo e a sustentabilidade das resistências

Iniciativas de cuidado, bem-estar e saúde física, emocional e psicológica fazem parte da agenda de muitas organizações de mulheres e têm ocupado lugar central nas apostas e processos de organização das defensoras do território. Os espaços e iniciativas de cuidado servem para recuperar coletivamente a confiança e a autoestima, e para contenção e suporte emocional nas diferentes situações de risco e violência que vivenciam em sua vida pessoal ou em função de seu ativismo.

A visão integral do cuidado também reflete a interdependência com a natureza e os elementos que a compõem a partir de uma relação profunda com seu território.

Colômbia

Colômbia

“(...) nós insistimos muito que é preciso conhecer a história das mulheres, as lutas que outras mulheres fizeram a nosso favor, os legados que elas nos deixaram em relação aos nossos direitos (...) com muito esforço. Que não se percam, que possamos manter acesa a chama das mulheres que dizem ‘Eu era uma antes de estar no grupo’, mulheres que estavam sozinhas em casa, que eram amas de casa, tinham muitas situações de submissão e proibições, entre outras. E o grupo permitiu-lhes compreender que não se trata de pedir licença, mas sim de arranjar, de construir, a gente até cuida para que os companheiros, as crianças que estão ao redor das mulheres, participem de algumas atividades.”

Depoimento do Movimento Mulheres pela Vida de Cajibío e Popayán sobre suas iniciativas de cuidado coordenadas por mulheres.

El Salvador

El Salvador

“A solidariedade entre as mulheres foi muito importante porque havia aquela confiança de dizer ‘me ajude, tenho esta necessidade’ e a solidariedade também surgiu para dizer ‘podemos apoiar a outra companheira com isso’, por isso acredito que conseguimos estreitar esses laços de irmandade entre mulheres e isso pode ser algo positivo que a pandemia nos deixou.”

Depoimento das mulheres da Associação para o Desenvolvimento Integral de Tejutepeque (ADIT).

O cuidado é interdependente e amplo em todo o território, e reflete as distintas cosmovisões e crenças dos povos. As mulheres defendem seus direitos socioculturais por meio do fortalecimento da identidade e da relação ancestral com os territórios, recuperando línguas, conhecimentos dos ancestrais, lugares sagrados e práticas tradicionais para o cuidado da terra e do corpo.

As iniciativas de mulheres defensoras dos territórios da região são um chamado à reflexão sobre novas formas de organização, sustentabilidade e resistência, bem como um questionamento do modelo que nos conduziu a um contexto de crise sanitária, social, econômica e política. Aprender com as histórias e propostas de vida das mulheres para pensar o presente e o futuro é uma forma de construir justiça ambiental e social e de lidar de maneira mais humana e cuidadosa com as possíveis novas crises que vamos enfrentar.

O cuidado é uma forma de habitar e construir mundos possíveis, uma aposta pelo bem viver que as defensoras dos territórios colocam no centro das suas resistências.

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